
A Associação Angelman Brasil, em defesa dos direitos das pessoas com deficiência e em nome das famílias de pessoas com necessidades complexas de comunicação, manifesta publicamente seu repúdio à Nota Técnica emitida pelo Comitê de Comunicação Aumentativa e Alternativa do Departamento de Linguagem da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa), datada de 2025.
A referida nota, embora reconheça a importância da Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA) para pessoas com dificuldades severas de comunicação, restringe indevidamente a competência técnica sobre a CAA ao profissional fonoaudiólogo, ignorando de forma preocupante a natureza multidisciplinar e interdisciplinar desta área do conhecimento.
A CAA é uma área que vai muito além da linguagem: ela exige profundo conhecimento sobre acessibilidade física, métodos de acesso (como acessos alternativos, rastreamento ocular, seleção com varredura ou acesso direto), processamento visual, aspectos sensoriais, cognitivos, de usabilidade tecnológica e de contexto social, educacional e cultural. Nenhuma dessas dimensões é de domínio exclusivo da Fonoaudiologia – pelo contrário, são competências que envolvem terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, profissionais da tecnologia assistiva, educadores, psicólogos, engenheiros biomédicos, linguistas, designers de interação, usuários e suas famílias, entre tantos outros.
O cenário real enfrentado pelas famílias comprova o impacto negativo dessa abordagem restritiva. Pessoas com deficiência, incluindo aquelas com síndrome de Angelman, frequentemente enfrentam negação sistemática do direito à comunicação por parte de profissionais que adotam uma visão ultrapassada, baseada em “pré-requisitos” para o uso da CAA. Esse conceito não encontra respaldo na literatura científica contemporânea e contraria os princípios da neurodiversidade, resultando em exclusão ao invés de inclusão.
Essa restrição institucionalizada pode levar a atrasos ou até mesmo à privação do acesso à CAA ao limitar quem pode conduzir avaliações e implementar sistemas e à falta de flexibilidade na escolha das ferramentas de comunicação, prejudicando a adaptação individualizada das soluções. Atua, assim, em desconsideração das evidências internacionais, que reforçam a necessidade de um trabalho colaborativo entre diversas áreas do conhecimento.
O National Joint Committee for the Communication Needs of Persons with Severe Disabilities (NJC), referência internacional na promoção dos direitos comunicacionais de pessoas com deficiências severas, é composto por entidades como a American Speech-Language-Hearing Association (ASHA), a American Occupational Therapy Association (AOTA), entre outras organizações profissionais e acadêmicas. O NJC tem como missão justamente incentivar práticas colaborativas interprofissionais, baseadas em evidências, para garantir o direito à comunicação. A Nota Técnica da SBFa vai na contramão desses princípios, ao propor uma abordagem de exclusividade profissional que ignora décadas de construção científica e política em torno da CAA como um campo necessariamente interdisciplinar, que exige a articulação entre saberes e práticas de diferentes áreas para responder adequadamente às complexas necessidades comunicativas das pessoas com deficiência.
A tentativa de garantir a exclusividade de uma profissão sobre a avaliação e implementação de CAA é um retrocesso perigoso, que compromete o acesso qualificado à comunicação por parte das pessoas com deficiência, sobretudo as mais vulneráveis (Ogletree, 2017; RCSLT, 2024). Em vez de ampliar o trabalho em rede e o cuidado centrado na pessoa, essa abordagem segrega o conhecimento e enfraquece o impacto positivo da CAA na vida dos usuários e suas famílias.
A American Speech-Language-Hearing Association (ASHA), que regula a prática da CAA nos Estados Unidos, adota um modelo semelhante, no qual o trabalho em equipe é a chave para o sucesso da comunicação alternativa (ASHA, 2004; ASHA, n.d.).
Como bem destaca Janice Light (1988), referência mundial na área, “A comunicação é a essência da vida humana”. Não é uma habilidade que se ensina como qualquer outro conteúdo curricular. A comunicação está presente em todos os aspectos da humanidade, molda nossas relações, determina nossa autonomia e é um direito humano inalienável. Esse direito está expressamente garantido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual o Brasil é signatário, que assegura, em seu Artigo 21, o direito à liberdade de expressão e opinião, incluindo o acesso à comunicação aumentativa e alternativa. Da mesma forma, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/2015), em seus artigos 3º, 5º e 9º, reconhece a comunicação – em todas as suas formas – como direito fundamental, e determina que o poder público deve assegurar acesso à tecnologia assistiva e à informação, sem discriminação ou barreiras de qualquer natureza.
A International Society for Augmentative and Alternative Communication (ISAAC), organização de referência mundial na área, que conta com um capítulo de membros brasileiros, do qual somos parceiros, há décadas promove a pesquisa científica, a formação e a articulação global sobre a CAA (ISAAC, n.d.). Sua composição é um exemplo vivo da riqueza do trabalho interdisciplinar: engloba profissionais de diversas áreas do conhecimento, bem como usuários de CAA e suas famílias, promovendo avanços concretos e humanizados no campo. A ISAAC reconhece que a eficácia da CAA depende da colaboração entre especialistas com diferentes formações, e não da concentração de competências em uma única categoria profissional.
A Associação Angelman Brasil reafirma seu compromisso inegociável com o direito à comunicação e com uma abordagem que respeite a dignidade, a autonomia e o protagonismo das pessoas com deficiência.
Conclamamos a Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia a revisar urgentemente seu posicionamento e a construir um modelo que reconheça e valorize o papel de todos os profissionais envolvidos na CAA, garantindo que as pessoas com necessidades complexas de comunicação tenham acesso justo, equitativo e sem barreiras a todas as ferramentas disponíveis para sua expressão.
Este é um chamado à razão, à ciência e, sobretudo, à justiça social.
Associação Angelman Brasil
Abril de 2025